Cavação - Artur Azevedo
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Prólogo
Naquela manhã o Saldanha estava desesperado: não havia quinze dias que lhe entrara na
algibeira, inesperadamente, uma bela nota de quinhentos mil-réis, e já não lhe restava um
níquel desse dinheiro!É verdade que ele passou uma semana de patuscadas, uma semana
cheia! A inesperada fortuna coincidira com o aniversário natalício de um dos pequenos, o Nhônhô,
e tinha havido peru de forno e até champanhe à mesa! Que diabo, um dia não são dias!O
semi-conto de réis voou, sem que o imprevidente Saldanha empregasse dez tostões em
qualquer coisa útil. A conta da venda - uma conta de cabelos brancos - ficou por pagar, não se
comprou um trapinho para as crianças, tão precisadas de roupa!O dinheiro viera das mãos de
certo negociante da rua da Alfândega, que encomendara ao Saldanha uma série de artigos
metendo à bulha uma companhia em liquidação, isto é, os respectivos liquidantes. O nosso
homem, que tinha dedo para essa espécie de literatura, fez obra asseada: as descomposturas
produziram o desejado efeito. O prosador contava com cem mil-réis. recebeu quinhentos.Foi um
delírio! O Saldanha subiu radiante a rua do Ouvidor, com cócegas de comprar tudo quanto via
exposto nos mostradores das lojas. Parou durante cinco minutos diante de um gramofone. - Que
surpresa seria para a pequenada! - Mas resistiu e passou. Foi esse o único movimento bom que
teve depois de endinheirado.E assim vivia o pobre-diabo, desde que, por negligente e ocioso,
perdera sucessivamente dezenove empregos e desesperara de obter o vigésimo. Era um
boêmio incorrigível, um desgraçado, que chegara aos trinta e oito anos sem uma onça de
juízo.Um dia em que lhe pareceu, e pareceu a todos, que estava definitiva e solidamente
arrumado num cartório de tabelião, o Saldanha casou-se com uma pobre moça a quem fazia
versos, e não de pé quebrado, porque para esse outro gênero de literatura também não lhe
faltavam aptidões.