O Espelho - Machado de Assis
Download no computador / eBook Reader / Mobile
210 kb
Sinopse
O Espelho é um conto integrante da obra Papéis Avulsos, do escritor brasileiro Machado de Assis, no qual é patente a exímia habilidade do escritor de desenvolver uma trama com pretensões filosóficas de profunda reflexão. Assim como anuncia o subtítulo do conto, este se pautará em anunciar uma nova teoria, naturalmente metafísica, sobre a alma humana nos moldes de um texto literário tradicionalmente machadiano.
Análise da trama
A história tem seu princípio na descrição de um ambiente de discussão provocado por quatro ou cinco senhores que investigam assiduamente as questões imateriais sobre a alma e o universo enfim. Dentre eles, o casmurro Jacobina parece um tanto quanto apático, distante da conversa de seus convivas. Este que, abstido de discutir, considerava esse exercício intelectual como oriundo da natureza besta, animal do homem, embora seja polido em sociedade. No momento em que um dos quatro cavalheiros exige uma posição de Jacobina, este se volta a eles anunciando que discorrerá sobre a alma humana, tomando a palavra a diante. Afirma que cada pessoa possui não uma, mas duas almas humanas: uma que se dirige do interior ao exterior e outra que realiza seu curso no sentido contrário, ou seja, de fora para dentro. Ambas as almas se completam como, segundo ele, duas metades de uma laranja, posto que a alma exterior pode se materializar como um botão, um livro, um espetáculo, um evento ou qualquer outro objeto exterior no processo de introversão. Jacobina define ainda em meio à curiosidade daqueles que o ouvem que há casos em que essa mesma alma exterior pode se perder, o que implica para o indivíduo em perder metade de sua existência real, bem como um homem rico que perde seu dinheiro, ou uma pessoa qualquer que perde algo, exterior a si, de seu extremo apreço. Nota-se nesse ponto o novo postulado filosófico é acompanhado pela tradicional crítica de Machado de Assis ao materialismo e aos cultos vazios da sociedade do século XIX.
No intuito de evitar discussões futuras, Jacobina coloca que somente narrará uma história para provar sua teoria com o silêncio de seus companheiros; este que vem como resposta imediata mediante a intensa curiosidade. A personagem então conta um caso ocorrido com ela em sua juventude que lhe serviu de atestado para a veracidade de sua teorização posterior.Depois de uma infância pobre, Jacobina conta que foi nomeado alferes da Guarda Nacional e que tal fato desencadeou reações de enorme proporção, tanto pela sua família quanto para os demais cidadãos. Quando foi passar algum tempo com sua tia, esta lhe cobriu de regalias como prova de seu orgulho perante a patente conquistada pelo sobrinho. No início, Jacobina relutava contra os bons tratos da tia e o privilégio de assistência que lhe cercioavam todos na caso. Belo dia a dona da casa trouxe para seu quarto um grande espelho, muito belo proveniente da Família Real Portuguesa.
Fato é que todas as regalias desequilibraram o recém alferes projetando sua alma exterior (sempre mutável) para as cortesias e bons tratos que o rodeavam. Desse modo, a percepção que Jacobina passou a ter de si mesmo foi elaborada por aqueles exteriores a ele, sedimentando uma personalidade arrogante respaldada no espírito da mocidade somado ao luxo do meio. Restou então para Jacobina uma pequena parcela de humanidade, puramente aquela que lhe orientava para os deveres de patente. Ou como coloca a famosa frase: “O alferes eliminou o homem”.
Posteriormente, tendo a tia saído em viagem e os escravos, aproveitando-se do momento oportuno, abandonado a casa, Jacobina abismou-se nas sombras da solidão. Passou penosos dias angustiado pela repentina perda de sua alma exterior, uma vez que sua alma interior se tornou altamente dependente daquela. Num momento preciso o alferes decide fitar o espelho – algo que não fazia havia algum tempo – e logo se depara com o reflexo de uma imagem difusa, corrompida. O vidro, cuja função é tão-somente a reflexão de um objeto em sua porção exterior, exibiu o quanto a identidade de Jacobina (sua patente) estava danificada em razão da ausência dos outros. A falta de reconhecimento de si mesmo diante do espelho levou o personagem a negar aquela imagem em busca de uma forma para enxergar a si mesmo com nitidez. Surge-lhe, então, a idéia de se vestir com a farda de alferes: desta vez pôde ver com clareza os contornos, as formas e os detalhes como nunca. Permaneceu se admirando com júbilo todos os dias restantes buscando evitar a solidão e a idéia de se ver distante de sua patente, recuperando, enfim, sua alma exterior que o preenchia sua alma. De volta ao salão, Jacobina que termina sua história deixa os cavalheiros no mais cândido silêncio reflexivo, indo-se embora. Provavelmente evitando possíveis discussões por desprezá-las.
Prólogo
Quatro ou cinco cavalheiros debatiam, uma noite, várias questões de alta transcendência,
sem que a disparidade dos votos trouxesse a menor alteração aos espíritos. A casa ficava no
morro de Santa Teresa, a sala era pequena, alumiada a velas, cuja luz fundia-se
misteriosamente com o luar que vinha de fora. Entre a cidade, com as suas agitações e
aventuras, e o céu, em que as estrelas pestanejavam, através de uma atmosfera límpida e
sossegada, estavam os nossos quatro ou cinco investigadores de coisas metafísicas,
resolvendo amigavelmente os mais árduos problemas do universo.
Por que quatro ou cinco? Rigorosamente eram quatro os que falavam; mas, além deles,
havia na sala um quinto personagem, calado, pensando, cochilando, cuja espórtula no
debate não passava de um ou outro resmungo de aprovação. Esse homem tinha a mesma
idade dos companheiros, entre quarenta e cinqüenta anos, era provinciano, capitalista,
inteligente, não sem instrução, e, ao que parece, astuto e cáustico. Não discutia nunca; e
defendia-se da abstenção com um paradoxo, dizendo que a discussão é a forma polida do
instinto batalhador, que jaz no homem, como uma herança bestial; e acrescentava que os
serafins e os querubins não controvertiam nada, e, aliás, eram a perfeição espiritual e
eterna. Como desse esta mesma resposta naquela noite, contestou-lha um dos presentes, e
desafiou-o a demonstrar o que dizia, se era capaz.