Diário Íntimo - Lima Barreto
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Prólogo
A antipatia do Largo de São Francisco fica mais acentuada nas primeiras horas da manhã, dos
dias de verão. O Sol o cobre inteiramente e se espadana por ele todo com a violência de um flagelo.
Pelo ar, a poeira forma uma película vítrea que fulgura ao olhar, e do solo, com o revérbero, sobe um
bafio de forja que oprime os transeuntes. Não há por toda a praça uma nesga de sombra, e as pessoas
que saltam dos bondes, caminham apressadamente para a doçura amiga da Rua do Ouvidor. Vão
angustiadas, e opressas, parecendo tangidas por ocultos carrascos impiedosos. Os negros chapéus-desol
dos homens e as pintalgadas sombrinhas das senhoras, ao balanço da marcha, sobem e descem
como se flutuassem ao sabor das ondulações de um curso d’água. São como flores, grandes flores,
nenúfares e ninféias, estranhas e caprichosas, que recurvassem as imensas pétalas ao Sol causticante
das nove horas da manhã. A superfície lisa da fachada da Politécnica é o espelho, onde se refletem e
concentram os raios do sol que quer o Largo vazio; e o trânsito se faz para e da Rua do Ouvidor,
segundo dois recurvados filetes que terminam num e noutro lado daquela fachada. À violência do Sol
nada resiste. O granito da portaria da igreja de São Francisco parece estalar. Os tílburis em fileira ao
centro da praça rebrilham como ágatas e as suas pilecas, a aquele calor, dormem resignadamente. De
quando em quando, por entre a fileira dos tílburis, um rapazola atravessa e lépido sobe as escadas da
Escola Politécnica. São os únicos transeuntes que se lançam pela praça corajosamente. As aulas começam
às dez horas e eles vêm vindo meia hora antes, em pleno suplício. No começo do ano é bom de ver o
pátio central por essa hora.