O Mistério da Estrada de Sintra - Eça de Queirós
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Sinopse
A história começa com o sequestro de um médico – Dr.*** – e de seu amigo escritor – F... O rapto, realizado por quatro mascarados, ocorre na estrada de Sintra. O Dr.*** e o seu companheiro são levados para uma misteriosa casa, onde se encontrava o cadáver estrangeiro. Sabendo que um deles era médico, os raptores pretendiam verificar se, de facto, o homem estava morto. Entretanto, são surpreendidos pela entrada de um jovem – A.M.C., que viria a esclarecer todo o mistério.
Rytmel era, afinal, um oficial britânico que morreu vítima de uma dose excessiva de ópio que lhe dera a amante – condessa de W., prima do mascarado alto. Esta desejava apenas adormecê-lo para confirmar nos seus papéis se ele era ou não amante de uma irlandesa.
A condessa de W. era casada com um homem rico que não a fazia feliz. Conhecera Rytmel numa viagem que fizera com o marido e com o primo a Malta. Cármen disputara Rytmel com a condessa. Quando Rytmel lhe anuncia a sua vinda, esta suspeitando do seu namoro com uma outra mulher, Miss Shorn, fica enciumada e mata-o involuntariamente.
A.M.C., estudante de Coimbra, honesto e provinciano, ouviu as confidências da condessa e dispôs-se a ajudá-la na noite do falecimento de Rytmel, em que a encontrara desvairada e nervosa. Quando volta ao local do crime, a pedido da condessa, encontra os bandidos, o médico e o seu amigo.
Todos juntos julgariam a atitude da condessa e fariam o enterro do pobre inglês. Luísa acaba por se isolar num convento.
Prólogo
Há catorze anos, numa noite de Verão, no Passeio Público, em frente de duas chávenas de
café, penetrados pela tristeza da grande cidade que em torno de nós cabeceava de sono ao
som de um soluçante pot-pourri dos Dois Foscaris, deliberámos reagir sobre nós mesmos e
acordar tudo aquilo a berros, num romance tremendo, buzinado à Baixa das alturas do Diário
de Notícias.
Para esse fim, sem plano, sem método, sem escola, sem docu mentos, sem estilo, recolhidos
à simples «torre de cristal da Imaginação», des fechámos a improvisar este livro, um em Leiria,
outro em Lisboa, cada um de nós com uma resma de papel, a sua alegria e a sua audácia.
Parece que Lisboa efectivamente despertou, pela simpatia ou pela curiosidade, pois que tendo
lido na larga tiragem do Diário de Notícias, o Mistério da Estrada de Sintra, o comprou ainda
numa edição em livro; e hoje manda-nos V. as provas de uma terceira edição, perguntando-
nos o que pensamos da obra escrita nesses velhos tempos, que recordamos com saudade...
Havia já então terminado o feliz rei nado do Senhor» João VI. Falecera o simpático Garção,
Tolentino o jucundo, e o sempre chorado Quita. Além do Passeio Púb lico, já nessa época
evacuado como o resto do país pelas tropas de Junot, encarregava-se também de falar às
imaginações o Sr. Octave Feuillet. O nome de FIaubert não era familiar aos folhetinistas.
Ponson du Terrail trovejava no Si nai dos pequenos jornai s e das bibliotecas económicas. O
Sr. Jules Claretie publicava um livro intitulado... (ninguém hoje se lembra do título) do qual
diziam comovidamente os críticos: — Eis a (uma obra que há-de ficar!... Nós, enfim, éramos
novos.
O que pensamos hoje do romance que escrevemos há catorze anos?... Pensamos
simplesmente — louvores a Deus! — que ele é execrável; e nenhum de nós, quer como
romancista, quer como critico, deseja, nem ao seu pior inimigo, um livro igual. Porque nele há
um pouco de tudo quanto um romancista lhe não deveria pôr e qua se tudo quanto um crítico
lhe deveria tirar
Poupemo-lo — para o não agravar fazendo-o em três volumes — à enumeração de todas as
suas deformidades? Corramos um véu discreto sobre os seus mascarados de diversas alturas,
sobre os seus médicos misteriosos, sobre os seus louros capitães ingleses, sobre as suas
condessas fatais, sobre os seus tigres, sobre os seus elefantes, sobre os seus iates em que se
arvoram, como pavilhões do ideal, len ços brancos de cambraia e renda, sobre os seus
sinistros copos de ópio, sobre os seus cadáveres elegantes, sobre as suas toilettes
românticas, sobre os seus cavalos esporeados por cavaleiros de capas alvadias
desaparecendo envoltos no pó das fantásticas aventuras pela Porcalhota fora!...
Todas estas coisas, aliás simpáticas, comoventes por vezes sempre sinceras, desgostam
todavia velhos escritores, que há muito desviaram os seus olhos das perspectivas enevoadas
da senti mentalidade, para estudarem pacientemente e humildemente as claras realidades da
sua rua.
Como permitimos pois que ser e publique um livro que, sendo to do de imaginação, cismado e
não observado. desmente toda a campanha que temos feito pela arte de análise e de certeza
objectiva?
Consentimo-lo porque entendemos que nenhum trabalhador deve parecer envergonhar-se do
seu trabalho.
Conta-se que Murat, sendo rei de Nápoles, mandara pendurar na sala do trono o seu antigo
chicote de postilhão, e muitas vezes, apontando para o ceptro, mostrava depois o açoite,
gostando de repetir: Comecei por ali. Esta gloriosa história confirma o nosso parecer, sem com
isto querermos dizer que ela se aplique às nossas pessoas. Como trono temos ainda a mesma
velha cadeira em que escrevíamos há quinze anos; não temos dossel que nos cubra; e as
nossas cabeças, que embranquecem não se cingem por enquanto de coroa alguma, nem de
louros, nem de Nápoles.
Para nossa modesta satisfação basta-nos não ter cessado de trabalhar um só dia desde
aquele em que datámos este livro até o instante em que ele nos reaparece inesperadamente
na sua tercei ra edição, com um petulante aninho de triunfo que, à fé de Deus, não lhe vai mal!
Então, como agora, escrevíamos honestamente isto é o melhor que podíamos desse amor da
perfeição, que é a honradez dos artistas, veio talvez a simpatia do público ao livro da nossa
mocidade.
Há mais duas razões, para autorizar esta reedição. A primeira é que a publicação deste livro,
fora de todos os mol des até o seu tempo consagrados, pode conter, para uma geração que
precisa de a receber, uma tal lição de independência.
A mocidade que nos sucedeu, em vez de ser inventiva, audaz, re volucionária, destruidora de
ídolos, parece-nos servil, imitadora, copista, curvada de mais diante dos mestres. Os novos
escritores não avançam um pé que não pousem na pegada que deixaram outros. Esta
pusilanimidade torna as obras trôpegas, dá-lhes uma expressão estafada; e a nós, que
partimos, a geração que chega faz-nos o efeito de sair velha do berço e de entrar na arte de
muletas.
Os documentos das nossas primeiras loucuras de coração queimámo-los há muito, os das
nossas extravagâncias de espírito de sejamos que fiquem. Aos vinte anos é preciso que
alguém seja estroi na, nem sempre talvez para que o mundo progrida, mas ao menos para que
o mundo se agite. Para se ser ponderado, correcto e imó vel há tempo de sobra na velhice.
Na arte, a indisciplina dos novos, a sua rebelde força de re sistência às correntes da tradição,
é indispensável para a revi vescência da invenção e do poder criativo, e para a originalidade
artística. Ai das literaturas em que não há mocidade! Como os velhos que atravessaram a vida
sem o sobressalto de uma aventura, não haverá nelas que lembrar Além de que, para os que
na idade madura foram arrancados pelo dever às facilidades da improvisação e entraram nesta
região dura das coisas exactas, entristecedora e mesquinha, onde, em lugar do esplendor dos
heroísmos e da beleza das paixões. só há a pequenez dos caracteres e a miséria dos
sentimentos, seria doce e reconfortante ouvir de longe a longe, nas manhãs de sol, ao voltar
da Prima vera, zumbir no azul, como nos bons tempos, a dourada abelha da fantasia
A última razão que nos leva a não repudiar este livro, é que ele é ainda o testemunho da íntima
confraternidade de dois antigos homens de letras, resistindo a vinte anos de provação nos
contactos de uma sociedade que por todos os lados se dissolve. E, se isto não é um triunfo
para o nosso espírito, é para o nosso coração uma suave alegria.
Lisboa, 14 de Dezembro de 1884.
De V.