Tudo Pode Mudar - Jonathan Tropper
Sinopse
Aos 32 anos, Zachary King é um homem que parece ter a sorte a seu favor. Possui um emprego estável, divide um apartamento luxuoso com um amigo milionário e está noivo de Hope, uma jovem inteligente, sensual e muito acima de seu nível social. Mas tudo começa a mudar quando ele encontra sangue em sua urina. Preocupado, procura imediatamente um médico, que o aconselha a investigar a causa do sangramento. Obcecado pela ideia de que se trata de um câncer, Zack começa a refletir sobre sua vida e as escolhas que fez até então. Nada parece satisfazê-lo de verdade. Seu trabalho é estressante demais e ele não tem certeza se ama Hope da forma como deveria. À medida que o casamento se aproxima, Zack é assombrado pela lembrança de Rael, seu melhor amigo, morto em um acidente dois anos antes, e por seus sentimentos cada vez mais complicados por Tamara, a bela viúva de Rael. Como se tudo isso não fosse ruim o bastante, seu pai, um homem inconsequente e viciado em Viagra, reaparece após 20 anos de ausência tentando reparar os erros do passado. Mesmo relutando em aceitar a presença do pai, Zack vai aos poucos se deixando influenciar pelo seu comportamento irresponsável e acaba tomando atitudes extremas, com resultados desastrosos. Em pouco tempo, sua vida amorosa se torna caótica e sua existência, antes tão bem estruturada, entra em um redemoinho que foge ao seu controle. Tudo pode mudar é um romance inteligente, emocionante e sexy uma história cruelmente divertida sobre as armadilhas do amor e as reviravoltas da vida.
Prólogo
Na noite que antecede o momento em que tudo muda, o solavanco de
um terremoto me acorda e, instintivamente, busco por Tamara, mas é claro
que não é Tamara – é Hope. Jamais houve uma ocasião sequer em que
poderia ter sido Tamara. Mesmo assim, nos últimos tempos, toda vez
que acordo, antes que a vida real ressurja, o meu primeiro e atordoado
instinto é supor que Tamara é a mulher que dorme a meu lado. Acho que
nos meus sonhos, não apenas em um ou dois dos quais me lembro, mas em
todos os milhões que desaparecem no ar, como mosquitos que mal nos dão
tempo de levantar a mão para alcançá-los, ela tem que ser minha inúmeras
vezes. Portanto, há sempre essa vaga sensação preocupante quando acordo
dessa maneira, a impressão de ter sido transportado para um universo paralelo, onde minha vida virou à esquerda e não à direita por causa de alguma
escolha aparentemente insignificante, mas cosmicamente crucial, que fiz a
respeito de uma garota, um beijo, um encontro, um emprego, uma filial da
Starbucks na qual entrei... alguma coisa.
Enquanto isso, de volta à vida real, o Upper West Side de Manhattan treme
como uma plataforma de metrô, chacoalhando as janelas, derrubando latas
de lixo, o gemido estridente do alarme de inúmeros carros crescendo por
toda a Broadway, penetrando a noite em seu momento mais silencioso, um
pouco antes do amanhecer.
– Zack! – grita Hope, estendendo a mão em minha direção, o volume de
sua voz quase tão assustador quanto o tremor de terra, suas unhas bem tratadas machucando os meus ombros. Hope, não Tamara. É isso mesmo. Tão
linda Hope. Abro os olhos.8
– Mas o que é isso? – É o melhor que consigo dizer em tal circunstância.
Voltamos os olhos para o teto enquanto a cama trepida levemente e logo
nos levantamos. Minha fiel cueca estampada com o Gato Félix e o pijama de
cetim de Hope comprado na Brooks Brothers revelam a natureza pós-coito
de nosso sono interrompido. Quando terminamos de descer as escadas em
direção à sala já não há mais tremores e nos deparamos com Jed, com quem
divido o apartamento, de pé, sem roupas, olhando pela janela com alguma
curiosidade.
– O que aconteceu? – pergunto.
– Não sei – responde ele, coçando o abdômen sarado. – Acho que foi um
terremoto. – Ele se volta e começa a andar em direção ao sofá.
– Oh, meu Deus! – grita Hope, enquanto vira o corpo e cobre os olhos.
– Opa – exclama Jed, dando-se conta da presença dela. – Oi, Hope.
– Dá para você esconder esse negócio por um minuto? – peço em nome
de Hope.
– Eu não sabia que ela estava aqui – diz Jed, sem fazer nenhum movimento para encobrir sua nudez.
– Bem, agora você já sabe – diz Hope, com aquela voz que parece um
choramingo alto e aristocrático e que nunca deixa de me irritar.
Adoro o Jed, mas ultimamente ele não perde uma chance de exibir seu
corpo. Nem me lembro da última vez que o vi usando uma camisa. Uma
das desvantagens de morar com um desempregado milionário é que ele
não tem nada para fazer além de ver televisão e cultivar excentricidades.
Por outro lado, moro em uma casa recém-reformada no Upper West Side
e não pago aluguel há três anos. Isso faz de mim um cara de sorte. No fim
das contas, vejo que sou recompensado por tolerar um falo balançando
de vez em quando. Agarro uma almofada do gigantesco sofá de couro que
contorna nossa enorme sala de estar, formando uma lua crescente, e jogo-a
na direção dele.
– Cubra-se, Jed. Pelo bem da humanidade.
Jed senta no sofá e esfrega os olhos enquanto me sinto asfixiado só de imaginar aquela bunda nua sobre o couro italiano cor de cogumelo. Ele cruza as
pernas e pousa a almofada de maneira cômica sobre a genitália, lançando para
mim um sorriso despreocupado que é sua marca registrada. Hope dá uma
fungada bem alta, com grande inflexão, antes de se dirigir para a janela. Jed
acumulou uma enorme fortuna, mas Hope já nasceu com dinheiro, fato que
traz em si um sabor bastante diferente. Como não me enquadro em nenhum 9
dos dois casos, tudo o que posso fazer é suspirar como quem diz “esta é a minha vida”, resignado mas com uma dose de contentamento. Jed é meu melhor
amigo, mas às vezes é um pouco imbecil. Hope é minha noiva, e, embora eu
não a considere esnobe, percebo que Jed pensa de outra forma. Eles são como
dois polos opostos, formando uma linha com a minha presença no meio. Em
termos físicos, porém, poderiam ser irmãos. Ambos são naturalmente bonitos, altos e magros, com cabelos fartos e traços que parecem esculpidos. A
testa proeminente de Jed e seu nariz grosso lhe conferem uma aparência europeia, como um modelo da Calvin Klein, e ele mantém os cabelos bem curtos
para não precisar escová-los. Os cabelos de Hope são abundantes, dóceis e
muitas vezes parecidos com o corte mais recente de Gwyneth Paltrow, ainda
que ela jamais admita sofrer influências tão prosaicas. Eu me vejo como uma
esquisitice no meio desses dois seres humanos atraentes, como aquele sujeito
que regula a luz em uma sessão fotográfica, ligado a ambos por um milagre,
um homem visivelmente comum; o cara lá no meio.
Jed e eu nos conhecemos em Columbia e nos tornamos colegas de quarto
depois de nos formarmos, morando em um apartamento detonado de quatro cômodos na esquina das ruas 108 e Amsterdã. Naquela época, ele trabalhava como analista na Merril Lynch e eu escrevia textos institucionais
longos e maçantes para uma empresa de produtos farmacêuticos. Jed então
pediu demissão, aplicou seu dinheiro em um fundo que investia em pequenas empresas voltadas para o desenvolvimento de ideias para a internet e,
como todo mundo menos eu, ficou milionário no mercado de ações no ano
2000. Quando a bolha estourou, já havia comprado o apartamento no West
Side e me convidado para morar com ele, tendo vendido grande parte de sua
carteira de ações antes da queda e depositado alguns milhões em um banco.
Durante algum tempo, ele ainda pensou em voltar a trabalhar na área financeira, ou talvez dar início a seu próprio fundo de investimentos, mas nosso
grande amigo Rael morreu e Jed deixou de pensar no assunto. Anunciou
que iria ficar em casa por um tempo, vendo televisão. Isso foi há quase dois
anos. Tenho a impressão de que ele descobriu sua verdadeira vocação. A
nudez é apenas um passatempo.
Rael, meu melhor amigo desde a terceira série, perdeu a direção quando
voltava para casa em seu BMW após uma noite de apostas em Atlantic City.
O carro deslizou em um aterro na estrada Garden State e bateu nas árvores
antes de capotar e cair em uma vala. Eram duas horas da manhã e a estrada estava vazia, por isso o socorro demorou e quando chegou ele já estava 10
morto. De qualquer maneira, duvido que pudessem salvá-lo, uma vez que
seus órgãos internos foram muito danificados pelo impacto quando ele foi
esmagado contra o volante. Seria um consolo imaginar que ele morreu instantaneamente, mas levou algum tempo. Eu sei o que estou dizendo, estava
sentado ao lado dele.
– Tivemos mesmo um terremoto? – pergunta Hope com uma voz de menina, enquanto espreita a esquina da rua 85 com a Broadway. O choramingo
desapareceu e eu volto a amar sua voz.
– Tudo indica que sim – diz Jed.
Ele liga a televisão em um dos canais locais enquanto observamos da janela, pensando na possibilidade de um ataque terrorista. Desde o 11 de Setembro, nada nos parece seguro. O ruído dos alarmes dos carros começa
a diminuir e algumas pessoas mais corajosas saem às ruas para avaliar a
situação. Estão exibindo um filme antigo do Clint Eastwood no canal 55 –
um Clint urbano, diferente do Clint cinzento dos faroestes – e um minuto
depois uma barra de notícias aparece na tela confirmando que, sim, tivemos
um pequeno terremoto. Ninguém se feriu e não houve prejuízos materiais.
– Desde quando Manhattan tem terremotos? – diz Hope num tom de voz
que demonstra que ela seria capaz de escrever uma carta para o supervisor
de quem quer que seja para reclamar do problema. – A vida inteira morei
aqui e não me lembro de nenhum terremoto.
– Talvez não no East Side – diz Jed. – Aqui no West Side eles acontecem
o tempo todo. – Ele nunca perde uma chance de alfinetar Hope por sua
origem privilegiada. – É para ensinar a gente a visitar as áreas pobres. – Jed
pisca para mim, uma piscadela rápida, dada sem o mínimo esforço, que eu
tento imitar de vez em quando sem nunca conseguir. Acho que meus músculos faciais não têm a flexibilidade necessária e minhas bochechas sempre
resolvem participar, fazendo com que pareça um tique nervoso.
Hope olha para Jed, abaixando o nariz perfeito, e declara, com sinceridade:
– Você é um bundão.
– Não – responde ele, levantando-se e dobrando o corpo para expor o
traseiro. – Isto é um bundão.
– Ora, pelo amor de Deus! – grita Hope num tom estridente e exasperado,
olhando para mim como se fosse culpa minha, com aquele sorriso forçado
que diz: “Que amigos maravilhosos você tem.” As origens finas de Hope
não a prepararam para sujeitos como Jed, ou mesmo como eu, e tenho que
admitir que ela se adaptou de maneira admirável, em nome do amor. 11
– Vamos voltar para a cama – sugiro, pegando-a pela mão. Jed se joga
com força de volta no sofá, o couro peidando ao roçar sua pele, ou talvez ele
tenha mesmo soltado um pum, o que não seria nenhuma surpresa. Mas não
ficamos esperando para verificar. Ele liga a televisão e começa a explorar o
vasto deserto de programas da madrugada.
– Boa noite, Jed – digo para ele lá da escada, mas Jed já se foi, totalmente
envolvido pelo brilho hipnótico verde-azulado da tela de plasma de 52 polegadas, seu verdadeiro lar nos últimos dois anos.
– Arquivo X – anuncia ele com entusiasmo. – Droga. Já vi este.
Jed vai ficar sentado ali até de manhã, o que dobra as chances de ele se
deparar com Chuck Norris. Em algum momento Jed vai cochilar, depois
tomar banho e pedir algo para comer no café da manhã, até que, satisfeito,
retomará sua vigília improdutiva.
De volta ao quarto, tento aproveitar nossa inesperada falta de sono e tirar o
pijama de Hope, mas, apesar de deixar minhas mãos perambularem alegremente por baixo da blusa, ela se recusa a tirá-la.
– Preciso trabalhar amanhã bem cedo – diz ela.
Tentando um movimento sedutor, acaricio seu seio esquerdo, friccionando o mamilo e deslizando a mão até o ponto onde a maciez termina e dá
lugar às costelas, e então subo de novo, o seio preenchendo a minha mão,
transbordando por entre meus dedos, como um bolo que cresce, quando
o pressiono para dentro. Hope possui o corpo mais fantástico que já tive a
permissão de tocar. Seu tronco longo e bem torneado é coroado por dois
seios extraordinariamente atrevidos, do tamanho de dois melões, cujos mamilos arredondados ficam de prontidão ao menor toque. As pernas são delgadas e musculosas, resultado do spinning praticado três vezes por semana
no Reebok Club, e acima delas repousa a bunda, como uma maçã pintada
por Magritte, firme mas deliciosamente complacente.
– Vamos lá – tento convencê-la, já me livrando da cueca do Gato Félix. –
Sexo de terremoto.
Ela me olha com ceticismo.
– Sexo de terremoto?
– É claro.
Posso passar a vida inteira catalogando o vasto manancial de diferentes
tipos de sexo que existem para serem praticados. Sexo com parceiro novo
(básico e sempre divertido), sexo no chuveiro (mais difícil tecnicamente do 12
que parece no cinema), sexo de amizade platônica depois da seca (o equivalente sexual à ração de emergência), sexo bêbado de cair (autoexplicativo),
sexo de motel (bagunce quanto quiser, já que não precisará limpar nada)
e sexo ao acordar (sem beijo de língua), só para citar alguns. Quando se trata
de sexo, meu adolescente interior assume o controle.
Hope não se deixa impressionar.
– Tenho um leilão amanhã – diz ela, retirando com firmeza a minha mão
de dentro do pijama.
– Você percebe que oportunidade rara é esta? – indago. – Quais são as
chances de acontecer outro terremoto em Manhattan?
– Um pouco maiores do que a chance de você conseguir sexo agora – responde ela enquanto boceja, vira para o lado e fecha os olhos.
– Por favor, não vou demorar.
– Sinto muito. Preciso dormir.
– E quanto às minhas necessidades?
Hope abre um olho e o dirige para mim.
– Fizemos sexo há três horas.
– E não foi ótimo?
O outro olho se abre.
– A terra estremeceu – diz ela sorrindo com amor, um sorriso raro, desprovido de sua ironia habitual. Eu amo esse sorriso, assim como a sensação
de ser, ao mesmo tempo, sua causa e seu efeito.
– Então, é por isso mesmo – respondo.
Ela se inclina e me dá um beijo rápido nos lábios.
– Boa noite, Zack.
Seu tom de voz não me deixa espaço para insistir. Não é que eu esteja contabilizando, mas desconfio que tenho feito muito menos sexo desde que esse
negócio de noivado começou. Viro de lado dolorosamente sobre os vestígios
da minha ereção e depois observo o sono tomar conta dela. Adoro o modo
como ela dobra as mãos sob o rosto, como uma criança fingindo dormir, a
forma como encolhe as pernas e se transforma em uma bola compacta. Hope
parada e quieta é uma visão rara, que me permite contemplar sua beleza e me
admirar, como sempre faço, com a inacreditável sorte que trouxe esse anjo
até a minha cama.
“Por que você me ama?”, perguntei a ela inúmeras vezes. “Porque você
tem um enorme coração”, ela sempre responde. “Porque você passou a vida
toda cuidando de seus irmãos e nem se dá conta da força e do amor ne-13
cessários para se fazer isso. Porque você acha que precisa se esforçar para
conseguir seja lá o que for, que nada vem fácil para você, o que significa,
entre outras coisas, que você nunca vai deixar de me dar valor. Porque todos
os namorados que tive me amaram por causa do meu potencial, pelo que
esperavam que eu me tornasse quando estivéssemos casados, uma cúmplice
na busca pela riqueza. Mas você não tem grandes planos para mim. Você
me ama pela pessoa que sou agora, o que quer dizer que você vai me amar
sempre, não importa o que eu venha a me tornar.”
– Por que você me ama? – sussurro em seus ouvidos.
– Porque eu sabia que você ia me fazer essa pergunta agora mesmo –
murmura ela sem abrir os olhos.
Quando adormeço, sonho com Tamara.
A vida, na maior parte do tempo, cai na rotina e a confluência aleatória de
momento e sorte, que determina os elementos que a compõem, fica esquecida. Entretanto, de vez em quando eu tenho um vislumbre da minha pró-
pria vida e me surpreendo com o que vejo. Tudo isso é resultado de quem
eu sou, morar na casa de meu amigo milionário e playboy e ter uma noiva
deslumbrante, de sangue tão azul quanto o céu claro de inverno. Passo os
dias trabalhando até a exaustão no escritório e, mais tarde, volto para uma
casa espetacular, onde convivo com cantores de rock e pessoas bonitas. Isso
não aconteceu por acidente. Eu fiz acontecer. Eu tinha um plano.
Estou prestes a ferrar tudo de maneira espetacular.
Amanheceu. Não preciso abrir os olhos para saber que Hope já se foi há
muito tempo. Ela deve ter acordado às 6h, preferindo tomar banho e se
vestir em sua própria casa antes de sair para o trabalho. Hope trabalha na
Christie’s, a famosa casa de leilões. Ela avalia pinturas do século XIX que
acabarão sendo leiloadas para pessoas ricas e pomposas. Embora não diga
nada, ela se sente um pouco enojada do meu chuveiro cheio de embalagens
grudentas de xampu, pedaços de sabonete amassados, cotonetes espalhados e aparelhos de barbear descartáveis colocados de forma estratégica em
qualquer lugar vazio. Já me ofereci várias vezes para manter um estoque
dos xampus caros que ela usa, de seu sabonete líquido preferido, mas ela
fica lívida diante da impropriedade dessa história de dividirmos o mesmo
banheiro antes do casamento. Na verdade, ela começou a dormir na minha 14
casa faz pouco tempo – em geral, nos fins de semana –, uma gentil concessão ao diamante que eu, inacreditavelmente, coloquei em seu dedo.
Viro o corpo e analiso o quarto com ternura e um toque de assombro,
como tenho feito todas as manhãs nos últimos três anos. É um quarto amplo, quadrado, com cerca de 25 metros quadrados. Coloquei poucos móveis,
para não perder a sensação de amplitude. Há uma cama de casal queen size,
uma pequena escrivaninha de cerejeira da renomada Door Store, sobre a qual
ficam um monitor preto de 18 polegadas e tela plana, um carregador de celular,
um telefone sem fio, fotografias, recibos e canhotos de lavanderia espalhados, além de uns seis meses de correspondência e papéis acumulados que
tenho a intenção de organizar, o que provavelmente nunca farei. As estantes, que vão do chão ao teto, estão abarrotadas com uma eclética coleção
de livros em brochura, a grande maioria de ficção contemporânea, alguns
clássicos só para constar, uma seleção dos melhores livros da série Jornada
nas estrelas, roteiros impressos baixados da internet e três ou quatro anos
acumulados das revistas Esquire e Entertainment Weekly. De frente para a
cama há um centro de entretenimento, com uma televisão Panasonic de 32
polegadas e tela plana, com DVD embutido, um videocassete e um aparelho
de som da marca Fisher. No centro do quarto fica apenas um tapete grená
grosso, que costuma estar coberto de roupas usadas. Em uma das paredes,
um pôster original, emoldurado, do filme Rocky, no qual um ensanguentado
Stallone pré-anabolizantes desaba no colo de Adrian; na parede oposta, uma
conhecida reprodução de Kandinsky, um presente de Hope. A porta do banheiro fica entre a estante e a escrivaninha. O quarto do meu apartamento
anterior era quase do tamanho desse banheiro.
A caminho do chuveiro, observo que Hope pendurou um de meus ternos
na maçaneta da porta do banheiro, com uma nota escrita em um Post-it
com sua caligrafia sempre elegante: Perfeito para a festa, mas precisa ir para
o tintureiro. Te amo, H. Os pais de Hope vão dar uma festa em nossa homenagem no próximo sábado à noite, no apartamento deles, para anunciar
oficialmente o nosso noivado. Tudo isso apesar da evidente decepção com
a escolha matrimonial da filha, embora eu acredite que estou começando a
cair nas graças de sua mãe, Vivian, que acha as minhas suscetibilidades de
classe média suburbana um tanto curiosas. Analiso a nota de Hope e o terno
escuro e sombrio que ela selecionou, com certeza sem ter percebido a etiqueta da loja de departamentos Moe Ginsburg, caso contrário, sem dúvida
ela o teria rejeitado. Hoje é segunda-feira. 15
– Merda! – exclamo sem nenhum motivo aparente.
Meu banheiro é todo decorado em um tom suave de cinza, os azulejos, o
papel de parede, a pia, a banheira e o vaso sanitário, tudo monocromático,
num agradável contraste com as toalhas brancas que descansam no suporte
de aço escovado. É como um centro de reabilitação situado entre o sono e a
consciência, silencioso, funcional e conciliador.
Enquanto esvazio a bexiga, observo algo perturbador. Meu xixi matinal,
sempre num tom vibrante de amarelo-canário, está sem cor, exceto por um
ocasional jato escuro, um fio de Coca-Cola misturado ao fluxo. Olhando
para dentro do vaso, vejo que as cores se separam e noto um pequeno fragmento que flutua e assume um tom inconfundivelmente vermelho. Sinto
um frio na barriga, um tremor interno. Analiso a minha imagem no espelho
por um minuto, minha testa franzida de amargura. “Isso não pode ser bom”,
penso em voz alta.
Quando entro no chuveiro, começo a imaginar, com melancolia, o que
pode ser e se é possível que seja algo capaz de impedir que eu compareça à
festa de noivado.