O Pai - Machado de Assis
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Prólogo
O pai vivia de hortelão; a filha vivia da costura; ambos viviam de uma esperança no futuro
e de uma reparação do passado.
Tinha cinqüenta anos o pai. Os cabelos brancos caíam-lhe em flocos da cabeça como
uma cascata e davam realce ao rosto severo, enérgico, mas ao mesmo tempo cheio de
uma dor profunda e resignada. Os anos o tinham curvado um pouco; mas era esse o
único vestígio do tempo. Os cabelos brancos e algumas rugas da cara tinham-lhe
aparecido em poucos dias, não gradualmente, por uma transformação rápida, como se ali
passasse um vento maldito e destruidor.
Os olhos profundos, serenos, perscrutadores, pousavam em alguém como se foram os
olhos da consciência; e ninguém os sofria por muito tempo, tal era a magia deles.
Tinha a franqueza, sem ter a intimidade; não oferecia a casa a ninguém nem ia à casa
alheia em ocasião alguma. Tinha fé nos homens, mas não a fé da credulidade cega; era
uma fé que examinava, perscrutava, esmerilhava, não se fiava nas aparências, não se
deixava fascinar pelos primeiros aspectos; quando acreditava em um homem tinha-lhe
analisado o coração.
E, ainda assim, ninguém poderia contar a glória de lhe haver atravessado a soleira da
porta. Dali para dentro não era já o mundo; era um lugar de penitência e de trabalho, onde
nenhum olhar estranho podia penetrar; e, se nem o olhar, muito menos o pé.
Duas criaturas únicas viviam ali, naquele ermo, contentes uma da outra, vivendo uma pela
outra, aliadas ambas no serviço de um juramento de honra, de um dever de consciência:
o pai e a filha.