O Escrivão Coimbra - Machado de Assis
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Prólogo
Aparentemente há poucos espetáculos tão melancólicos como um ancião comprando um
bilhete de loteria. Bem considerado, é alegre; essa persistência em crer, quando tudo se
ajusta ao descrer, mostra que a pessoa é ainda forte e moça. Que os dias passem e com
eles os bilhetes brancos, pouco importa; o ancião estende os dedos para escolher o
número que há de dar a sorte grande amanhã — ou depois — um dia, enfim, porque
todas as coisas podem falhar neste mundo, menos a sorte grande a quem compra um
bilhete com fé.
Não era a fé que faltava ao escrivão Coimbra. Também não era a esperança. Uma coisa
não vai sem outra. Não confundas a fé na Fortuna com a fé religiosa. Também tivera esta
em anos verdes e maduros, chegando a fundar uma irmandade, a irmandade de S.
Bernardo, que era o santo de seu nome; mas aos cinqüenta, por efeito do tempo ou de
leituras, achou-se incrédulo. Não deixou logo a irmandade; a esposa pôde contê-lo no
exercício do cargo de mesário e levava-o às festas do santo; ela, porém, morreu, e o
viúvo rompeu de vez com o santo e o culto. Resignou o cargo da mesa e fez-se irmão
remido para não tornar lá. Não buscou arrastar outros nem obstruir o caminho da oração;
ele é que já não rezava por si nem por ninguém. Com amigos, se eram do mesmo estado
de alma, confessava o mal que sentia da religião. Com familiares, gostava de dizer
pilhérias sobre devotas e padres.