Pobre Cardeal! - Machado de Assis
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Prólogo
Martins Netto costumava dizer que era o homem mais alegre do século, e toda a gente
confirmava essa opinião. Ninguém lhe vira nunca nenhuma sombra de melancolia. Já
maduro, era ainda o melhor acepipe dos jantares, um repositório de ditos picantes,
anedotas joviais, repentes crespos e crus; mas, além disso, que é a despesa exterior da
alegria, ele a tinha em si mesmo, no sangue e na vida. Pouco antes de morrer, em 1878,
dizia ele a um amigo íntimo, que lhe invejava o temperamento:
— Sou alegre, muito alegre; mas se disser a você que a isto mesmo devo uma grande
amargura...
Calou-se, deu duas voltas, e tornou ao amigo:
— Vou contar-lhe uma coisa secreta, como se me confessasse a um padre. Sabe que fui
um dos julgadores do famoso processo de letras falsas João da Cruz, em 1851. Houve
nessa sessão do júri muitas causas importantes, que eu julguei com a inflexibilidade do
costume, e condenei muita gente, do que me não arrependo.
Na véspera de entrar o processo do João da Cruz, estive com um tal capitão José
Leandro, que morava na Rua da Carioca; falamos do processo, das letras, de mil
circunstâncias, que me esqueceram, e, finalmente, do próprio João da Cruz, que o capitão
José Leandro dizia conhecer desde menino. O pai deste capitão foi um general português,
que veio com o rei em 1803, e aqui casou pouco depois com uma senhora de Cantagalo.
José Leandro era menino quando João da Cruz apareceu em casa dele, na Rua de Matacavalos;
lembrava-se que ele os festejava e adulava muito; lembrava-se também que ali
pelos fins de 1816 andava João da Cruz muito por baixo, beirando a miséria, roupa de
ano, amarela de uso, mal remendada...