O Primo da Califórnia - Joaquim Manuel de Macedo
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Prólogo
CENA PRIMEIRA
BEATRIZ (Em pé, engraxando um botim) – eis-me aqui pagando os meus pecados!... eu sou uma espécie de
verbi-gratia das mudanças desta vida. No tempo do vice-rei chamavam-me a nenê da rua das Flores; quando
o rei chegou, já eu era conhecida pela formosa Beatriz: depois que me apareceu o primeiro cabelinho branco,
tiveram o desaforo de tratar-me por tia Beatriz; felizmente ainda a sorte me deparou um soldado inválido que
quis casar comigo; mas veio a febre amarela, que deu baixa eterna ao meu querido Pancrácio, e eu fiquei
viúva, e viúva sem filha, e sem vintém! Não tive remédio senão recorrer aos Diários, e anunciar uma criada
para homem solteiro ou viúvo: tive a esperança de me tornar meia-dona de casa; mas por fim de contas fiquei
simples criada, e criada muito ordinária: isto é, criada de um músico!... Eis aqui portanto a bota de um músico
engraxada pelas mãos da formosa Beatriz!... Oh! Eu só conheço três coisas tão desprezíveis como as botas de
um músico: uma barretina de soldado, um capote de estudante, e uma casaca de meirinho! E eu sempre a
engraxar estas botas, botas de um músico, de um músico que tem a pouca vergonha de me estar a dever cinco
patacas de despesas miúdas!... (Canta)
No tempo da ventura
Chamavam-me formosa;
E agora nem airosa
Alguém, que eu sou, me diz!...
Engraxa, engraxa as botas,
Engraxa, Beatriz!
Meus olhos, minhas faces
Cobriam de louvores;
E agora... adeus amores,
Já torcem-me o nariz!
Engraxa, engraxa as botas,
Engraxa, Beatriz!