O Sonhador - Salomão Rovedo
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Prólogo
“Os segredos também são gente: nascem, vivem e morrem”, disse Armando encerrando uma conversa a que foi chamado. Diariamente às 11 horas da manhã ele chegava de braços dados com dona Yzolina, se despediam com uma troca de beijos, ela seguia por mais um quarteirão até a igreja de N. S. Aparecida, Armando ficava parado mais um momento olhando a mulher se afastar, atravessar o sinal de pedestre do cruzamento, subir a escadaria, até sumir lá dentro da igreja – e só então ele entrava no bar.
Por duas razões coisas Armando conquistou a deferência se ser recebido sempre por Zezinho, gerente e filho do dono da casa. Primeiro porque conheceu seu pai – com quem ficava horas e horas conversando – que retornou a Trás-os-Montes após anos e anos de trabalho ali, quando o restaurante ainda se chamava Adega dos Solitários. Segundo porque só bebia um tipo de cerveja, a preta de alta fermentação, em fase de desaparecimento, que Zezinho, por tradição herdada do pai, comprava especialmente por causa daquele consumidor. Ainda existe gente assim...
Armando sentava-se, desdobrava o jornal para ler enquanto esperava ser servido da cerveja preferida, em tulipa que exigia gelada. Servia-se deixando pelo menos dois dedos de espuma, olhava o borbulhar através da cevada queimada e enfim bebia. Em média consumia uma ou duas garrafas da cerveja preta, dependendo da disposição física... e do calor lá fora. Bebericava a cerveja com prazer e só desviava a atenção do jornal para cumprimentar um, receber abraço de outro, um bom dia, outro até logo. O Bar e Restaurante Ponte da Barca – nome novo que ganhou após a reforma – era normalmente freqüentado por gente por demais conhecida, do bairro, portanto não havia ninguém que desrespeitasse aquele ritual extremamente particular.