Identidade Roubada - Chevy Stevens
Sinopse
Aos 32 anos Annie O’Sullivan levava uma vida que podia considerar bastante normal e tranquila, tinha um namorado bonito e atencioso, a casa de seus sonhos com uma adorável companheira canina e um emprego estável como uma das principais corretoras de imóveis de Clayton Falls, prestes a conseguir a exclusividade de vendas em um grande empreendimento.
A rotina pacata de Annie, no entanto, sofre um terrível golpe. Sequestrada por um psicopata que se aproximara sob a fachada de um cliente interessado em uma casa, ela fica presa durante um ano em um chalé totalmente isolado nas montanhas onde é obrigada a seguir regras extremamentes rígidas em uma rotina doentia detalhadamente arquitetada por seu algoz, sofrendo estupros e outras agressões, físicas e psicológicas, diariamente…
Prólogo
Sabe, doutora, esta não é a primeira vez que tento fazer terapia desde que
voltei. O cara que foi recomendado pelo médico da minha família logo
depois que cheguei em casa era uma figura. Ele se comportava como se não
soubesse quem eu era. Que idiotice! Só alguém cego e surdo não saberia. Droga,
parece que para onde me viro tem algum imbecil saindo de trás da moita com
uma máquina fotográfica. Mas, antes que essa merda toda acontecesse, a maioria das pessoas nunca tinha ouvido falar de Vancouver Island, muito menos de
Clayton Falls. Hoje, basta mencionar a ilha a qualquer pessoa e aposto que a
primeira coisa que ela vai dizer é: “Não foi lá que aquela corretora de imóveis
foi sequestrada?”
Até o consultório do cara era desestimulante: sofás de couro preto, plantas de
plástico e uma mesa de metal cromado com tampo de vidro. É assim que se deixa
um paciente à vontade? E todos os objetos ficavam perfeitamente alinhados sobre
a mesa. Os dentes dele eram a única coisa desalinhada naquele consultório. Quer
saber, só pode haver algo errado com um sujeito que tem a necessidade de alinhar
tudo sobre a mesa, mas que não conserta os próprios dentes.
De saída, ele perguntou sobre minha mãe e então me pediu que pegasse lápis
de cor e representasse meus sentimentos no papel. Quando eu disse que aquilo
parecia gozação, ele respondeu que eu estava reprimindo minhas emoções e
que precisava “abraçar o processo”. Que se danem ele e o processo. Não passei
de duas sessões. Fiquei a maior parte do tempo me perguntando se devia acabar
com a vida dele ou com a minha.
Por isso, só em dezembro – quatro meses após minha volta – resolvi tentar
de novo essa coisa de terapia. Estava quase conformada a ficar ferrada para
sempre, mas a ideia de passar o resto da vida daquele jeito... O seu texto no site
é bem engraçado para uma terapeuta e seu rosto me pareceu amigável... e com
dentes bonitos, por sinal. E mais, você não tem um monte de siglas – que só
Deus sabe o que significam – depois do nome. Não faço questão do especialista
mais conhecido do mundo. Isso é sinônimo de um ego enorme e de uma conta
maior ainda. Também não me importo de dirigir uma hora e meia até aqui. A
viagem me afasta de Clayton Falls, e até hoje não encontrei nenhum repórter
escondido no banco traseiro do carro.
Não me leve a mal. O fato de você parecer uma avó – devia estar tricotando,
não anotando o que os outros falam – não quer dizer que eu goste de estar aqui.
E por que eu deveria chamá-la de Nadine? Não sei aonde quer chegar, mas tenho
um palpite: ao usar seu nome, seria como se fôssemos grandes amigas, logo
poderia contar coisas das quais não quero me lembrar... e muito menos falar a
respeito! Desculpe, não estou lhe pagando para ser minha amiguinha, então é
melhor aceitar que eu a chame de doutora.
E, já que estamos acertando os ponteiros, vamos estabelecer algumas regras
básicas antes de começarmos nossa brincadeira. Vai ter que ser do meu jeito.
Isso quer dizer que você não vai perguntar nada. Nem mesmo “Como se sentiu
quando blá-blá-blá...?”. Vou contar a história desde o começo e, quando quiser
ouvir sua opinião, eu peço.
Ah! E, caso queira saber, não, nem sempre fui uma pessoa amarga.
Naquela manhã do primeiro domingo de agosto fiquei na cama até mais
tarde, enquanto Emma, minha golden retriever, roncava no meu ouvido. Eram
poucas as minhas horas de descanso. Naquele mês eu vinha me matando de
trabalhar para ter exclusividade na venda de um condomínio à beira-mar.
Nos padrões de Clayton Falls, um complexo de 100 unidades é algo fora do
comum, e àquela altura a concorrência havia se reduzido a outro corretor e eu.
Não sabia quem era meu concorrente, mas o construtor tinha me telefonado
na sexta-feira, dizendo-se impressionado com minha apresentação e informando que a decisão final seria anunciada em poucos dias. Eu me senti tão perto
do sucesso que podia até saborear o gostinho do champanhe. Na verdade, eu
tinha provado champanhe uma única vez, numa festa de casamento, e acabei
trocando a bebida por uma cerveja: não existe nada mais chique do que uma
dama de honra bebendo cerveja no gargalo. Mas eu tinha certeza de que aquela
venda me transformaria numa mulher sofisticada. Algo do tipo “da água para
o vinho”. Ou, no caso, da cerveja para o champanhe.
Depois de uma semana de chuva, o sol finalmente apareceu e a temperatura
subiu o bastante para eu usar meu tailleur favorito. Era amarelo-claro e feito
de um tecido bem leve. Eu adorava como a tonalidade do conjunto suavizava
o castanho dos meus olhos. Em geral evito saias, pois, com um pouco mais de
um metro e meio de altura, eu fico parecida com uma anã. Mas algo no corte
daquela saia alongava minhas pernas. Resolvi usar salto. Eu tinha acabado de
aparar os cabelos, que balançavam com perfeição na altura do queixo. Depois
de uma última olhadinha no espelho do hall de entrada, à procura dos fios
brancos – eu havia completado apenas 32 no ano anterior, mas os desgraçados sempre chamam a atenção no meio dos fios pretos –, assobiei para mim
mesma, me despedi de Emma com um beijo... tem gente que bate na madeira,
eu beijo minha cadela... e saí porta afora.
O único compromisso era um plantão de vendas em que o imóvel ficaria
aberto à visitação de possíveis compradores. Seria melhor tirar o dia de folga,
mas os proprietários da casa estavam ansiosos por vendê-la. Era um casal alemão tranquilo, e a mulher fazia bolos de chocolate para mim. Assim, não me
importava em dedicar algumas horas à felicidade deles.
Meu namorado, Luke, ia jantar na minha casa depois que saísse do restaurante
italiano do qual é dono. Na noite anterior, ele havia trabalhado até tarde, então
escrevi um e-mail dizendo que esperava vê-lo na noite seguinte. De início, quis
mandar um daqueles cartões que ele sempre me enviava, mas as opções eram muito
infantis: coelhinhos, sapinhos ou esquilinhos se beijando. Então decidi mandar um
simples e-mail. Ele sabia que eu era mais de agir do que de falar, porém eu andava
tão concentrada no condomínio à beira-mar que não vinha “agindo” muito com
o pobre rapaz, que sem dúvida merecia mais atenção. E ele não reclamava, nem
quando eu precisava cancelar um compromisso em cima da hora.
Meu celular tocou quando eu tentava enfiar a última placa de venda no
porta-malas do carro sem sujar a roupa. Peguei o telefone dentro da bolsa, na
esperança de que fosse o construtor.
– Você está em casa?
Oi, mãe, eu vou bem, obrigada...
– Estou de saída para o plantão da corretora.
– Você ainda vai dar plantão hoje? A Val disse que não tem visto suas placas.
– Você falou com a tia Val?
A cada dois meses minha mãe tinha uma briga com a irmã e jurava “nunca
mais falar com ela”.
– Primeiro, ela me convida para almoçar, como se não tivesse me ofendido
na semana passada... até aí, tudo bem. Então, antes de fazermos os pedidos,
ela resolve me dizer que sua prima vendeu uma casa na beira da praia. Você
acredita que a Val vai pegar um avião até Vancouver amanhã só para comprar
roupa com ela na rua Robson? Roupa de marca.
Beleza, tia Val! Eu me seguro para prender o riso.
– Sorte da Tamara... Além do mais, tudo o que ela veste cai bem – comentei.
Eu não via minha prima desde que ela havia se mudado para o continente
depois de concluir o ensino médio, mas tia Val sempre nos mandava fotos por
e-mail que pareciam dizer: vejam as façanhas dos meus filhos incríveis.