O Monstro e Outros Contos - Humberto de Campos
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Prólogo
Pelas margens sagradas do Eufrates, que fugia, então, sem espuma e
sem ondas, caminhavam, na infância maravilhosa da Terra, a Dor e a Morte.
Eram dois espetros longos e vagos, sem forma definida, cujos pés não
deixavam traços na areia. De onde vinham, nem elas próprias sabiam.
Guardavam silêncio, e marchavam sem ruído olhando as coisas recém-criadas.
Foi isto no sexto dia da Criação. Com o focinho mergulhado no rio,
hipopótamos descomunais contemplavam, parados, a sua sombra enorme,
tremulamente refletida nas águas. Leões fulvos, de jubas tão grandes que
pareciam, de longe, estranhas frondes de árvores louras, estendiam a cabeça
redonda, perscrutando o Deserto. Para o interior da terra, onde o solo
começava a cobrir-se de verde, velando a sua nudez com um leve manto de
relva moça, que os primeiros botões enfeitavam, fervilhava um mundo de seres
novos, assustados, ainda, com a surpresa miraculosa da Vida. Eram aves
gigantescas, palmípedes monstruosos, que mal se sustinham nas asas
grosseiras, e que traziam ainda na fragilidade dos ossos a umidade do barro
modelado na véspera. Algumas marchavam aos saltos, o arcabouço à mostra,
mal vestidas pela penugem nascente. Outras se aninhavam, já, nas moitas
sem espinhos, nos primeiros cuidados da primeira procriação. Batráquios de
dorso esverdeado porejando água, fitavam mudos, com os largos olhos
fosforescentes e interrogativos, a fila cinzenta dos outeiros longínquos, que
pareciam, à distância, à sua brutalidade virgem, uma procissão silenciosa,
contínua, infinita, de batráquios maiores.