Memorial de um Passageiro de Bonde - Amadeu Amaral
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Prólogo
O meu amigo João Felício Trancoso, conceituado, chefe de seção, prometeu
um dia, em troca já não sei de que serviço, que me faria um presente à minha
escolha. Resisti, como cumpria, à promessa de outra compensação que não fosse a
da sua velha e sempre nova amizade.
Mas Trancoso é obstinado e não me deixou sossegar. Exigiu sempre que eu
lhe dissesse o que preferia — se a coleção das obras de Jorge Ohnet (a sua maior
predileção em literatura), se uma cigarreira de prata, se um guarda-chuva de seda.
Como eu teimasse em recusar, mandou-me o guarda-chuva e, não
satisfeito, pouco depois me veio ameaçar com as obras de Jorge Ohnet. Urgia
romper o cerco.
Ora, eu sabia que Trancoso, muito calado, rascunhava um diário das suas
impressões de viagem. Das viagens que há vinte anos faz, como bom empregado
público, de casa para a repartição e da repartição para casa. Tomei-lhe um punhado
de folhas, li-o, e disse-lhe: "Este é o presente que exijo".
Tentou repontar, quis sofismar o contrato: venci-o à força de senso jurídico e
de severas admoestações.
Nenhuma lembrança do velho amigo me poderia ser mais grata do que
esses papéis em que lançou uma verdadeira porção de si mesmo. Verdadeira,
porque Felício não conhece a arte dos desdobramentos literários da personalidade.
Nota no memorial as espontâneas modificações de sua alma ao contato das coisas
e dos homens. Não edifica a sua obra: segrega-a. Não a escreve para verificar ou
provar que também é capaz de fazer literaturas, mas "para ter a sensação de que se
expurgou de uma inevitável porção de tolices".